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segunda-feira, 18 de julho de 2011

Processo de criação - Man-Chá 16.07

Sobre o processo de criação Man-Chá

Sinto que sangra
Sinto que mancha

Sinto meus pés buscando percorrer um caminho
Sem perder o equilíbrio

Sinto a ausência das minhas certezas
Que são levadas pela pequena força de um sopro

Deixa que mancha

Que eu quero lavar!

Mariana Konrad

A partir deste poema, veio a idéia de construir uma ação que revelasse essa sensação de se permitir sangrar. A consciência dos ciclos.
Ao longo de minhas pesquisas e experiências, a mancha sobre tecido foram materiais de linguagem e estudos. Neste trabalho, as gotas vermelhas sobre o tecido branco formam a essência do Man-Chá. Imagens que permeiam o inconsciente coletivo, o sangrar do nascimento, dos ciclos menstruais, da primeira relação sexual, do parto, da morte.
No livro Mulheres que correm com lobos – Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem, Clarissa Pinkola Estés analisa no conto da Mulher-esqueleto estes ciclos:

“Através dos seus corpos, as mulheres vivem muito perto da natureza da vida-morte-vida. Quando as mulheres estão em pleno uso de sua mente instintiva, suas idéias e impulsos no sentido de amar, de criar, de acreditar, de desejar, nascem, cumprem seu tempo, fenecem e morrem, para renascer mais uma vez. (...) A partir da sua própria carne e de seus próprios ossos, bem como dos ciclos constantes de enchimento e esvaziamento do vaso vermelho do seu ventre, a mulher compreende em termos físicos, emocionais e espirituais que os apogeus têm seu declínio e sua morte, e que o que sobra renasce de um jeito inesperado e por meios inspirados, só para voltar ao nada e mais uma vez retornar em pleno esplendor. (...)”

A leitura desse trecho, no entanto, somente ocorreu recentemente, de forma a se incorporar perfeitamente na temática da performance.
Primeiramente, no processo de construção do trabalho, visualizei meus braços atados com tecido branco retangulares em camadas, que ficasse posicionado na frente do meu ventre quando sustentasse meus braços pra frente. Imediatamente veio a imagem de a tinta pingar aos poucos nesse tecido. Fiz o ensaio sozinha, e como em todo processo, a prática nos surpreende. Nesse momento observei a quantidade e o tempo para tinta manchar o tecido, como era seu movimento de acordo com os gestos do meu corpo.
Todo ensaio foi filmado. Fazendo análise do vídeo e dos materiais, tecidos manchados, me inspirei novamente a escrever. Outro poema surgiu junto ao nome da performance:

Man-chá

Um ritual de chá.
O que nos é servido escapa.
Aos poucos...

Marca.
Aos poucos...

Acumulando gotas.
Segurando nos braços o peso.
Sustentando.
Marcas vermelhas na altura do ventre.

Sangra.
Aos poucos...

Desatamos os nós
Até retirar todas as marcas.
Aos poucos...

Deixadas no chão
Como pegadas
Aos poucos...

O ventre, a terra, a base estremecia.
Aos tremores constantes que nos invadem.
As fortes águas que levam embora sem pedir passagem.

Um grito silencioso em gestos.

Mariana Konrad


Analisando a poesia, percebi a importância de outras mulheres apresentando a ação.
Como integrar a idéia, antes solitária agora para um grupo?
Como passar os movimentos e gestos que imagino para o corpo das outras intérpretes?
Até que ponto abrir para novas idéias e manter a essência do conceito?
Questões que foram sendo observadas ao longo desse período.

Ensaiando com as integrantes da ação e conversando com diversas pessoas sobre a performance, simbolismo apresentados, associações à minha vida pessoal, à vida das outras mulheres, percebi algumas questões.

Porque lenços de cetim brancos?
São três lenços de 1,20cm por 60cm, cada ponta amarrados com fita de cetim branca em três pontos do braço - Ombros, cotovelos e punhos.
O branco está associado à purificação, ajuda a limpar e clarear as emoções, os pensamentos e o espírito. Representa a mãe, trazendo harmonia e pureza ao lar, fortalece a imaginação, a criatividade e a fertilidade. Serve de escudo bate e volta, pois assim como a energia solar, outras energias não fixam porque não penetram. Por isso, algumas religiões adotam em funerais e enterros a vestimenta branca, para os espíritos dos mortos não fixarem nos vivos. Protege as menstruações, os partos e a gravidez.
A leveza do cetim, um brilho, maciez. Fitas finas de cetim amarrando, atando esses véus, esses lenços ao corpo, os braços sustentam seu peso inicialmente tão leve, até começar a escorrer a tinta, criar manchas nesse tecido, um peso...

Porque tinta vermelha?
A tinta vermelha está dentro de um bule, “o chá” que será servido por cada mulher.
A forma que essa tinta mancha o os lenços branco é através de gotas. Um pequeno furo no bule de cada uma permite esse filtro, a criação dessas gotas. Existe um tempo para tinta vermelha manchar cada vez mais o tecido. Aos poucos...
Quase não se percebe esse movimento da tinta para o tecido.
As gotas são lágrimas, o chorar necessário, o alívio do que vai embora.
O vermelho associado ao sangue. O sangrar do nascimento, da menstruação, da primeira relação sexual, do parto, da morte. No vermelho, há vitalidade, vibração, intensidade. Não passa batido, marca, chama a atenção, é a cor que sinaliza, dá o alerta, limite, perigo...

Porque vestidas de branco?
Os vestidos salientam a importância do branco, inclusive a sua neutralidade.
Vestido - uma peça de roupa, essencialmente associada ao universo feminino. O caráter aqui não é de noiva, mas sim de mulheres que vivenciam uma relação esse universo.

Porque ritual de chá?
A cerimônia do chá, de acordo com sua história, está associada à meditação, momento de purificar, harmonizar. O bem estar, associado à saúde do corpo e da alma. Ritual realizado por uma confraternização ou individualmente. O tempo de um ritual de chá é lento, uma bebida quente, tomada aos poucos, como o tempo da ação, aos poucos. Na performance, o mesmo bule com a mesma tinta, o mesmo “chá”, é servido por cada uma. No seu tempo, no seu ritmo. Ao mesmo tempo em que há um processo individual, elas se relacionam, se olham, ambientam um mesmo espaço.

Ainda hoje a Cerimônia Japonesa do Chá, Cha-no-yu, exige um padrão preciso de comportamento com a finalidade de criar um intervalo de quietude durante o qual tanto o hospedeiro como os convidados tentam atingir paz espiritual e harmonia com o universo. Em 1906, Okakura Kakuzo escreveu no seu Livro do Chá: "O ritual do chá é um culto fundamentado na adoração do belo entre os fatos sórdidos da existência diária. Transmite pureza e harmonia, o mistério da caridade mútua, o romantismo da ordem social."
A Cerimônia do Chá capta todos os elementos essenciais da filosofia japonesa e da beleza artística, e entrelaça quatro princípios: a harmonia (com as pessoas e com a natureza), o respeito (pelos outros), a pureza (do coração e do espírito), e a tranqüilidade.
Um dos principais atos da cerimônia é o que chamamos de Makoryo, ou seja, a "purificação e transformação do interior", no sentido de aquele elemento (chá), proveniente da fusão do fogo e água, dar início a uma terceira energia, que renova todo o interior a quem o pratica.

Porque instrumento japonês gongo?
O gongo, instrumento com uma chapa de metal, geralmente em formato circular, com as extremidades voltadas para dentro, sustentado por cordas em uma estrutura de madeira. Som estridente que reverbera por um determinado período. A performance diante de diversos momentos do seu processo de criação, esteve relacionada com uma cultura do Japão. Ao trazer esse instrumento, além de associar culturalmente, o simbolismo trazido pelo som e a forma como ele atua no ambiente também contribuem para performance. Seu som torna-se uma marcação. Início de um período, término de outro. Assim para cada mulher, seu ritmo, o reverberar interno de cada momento.

Porque os números – 3 camadas de tecido – 3 fitas em cada braço – 4 mulheres – 12 lenços ao total?
Cada vez que nos reuníamos para ensaio e discutíamos significados da performance, passamos a enxergar simbolismos encontrados, casualmente ou não.
O numero 3 associado ao equilíbrio, aos três tempos: o antes o agora e o depois. Auto-expressão - Criação - Fruto. É o primeiro número criado a partir da soma de outros dois - (1) o princípio masculino e (2) o feminino, que juntos dão origem ao 3. Representa a solução de um conflito gerado pelo dualismo e exprime a fórmula da criação de cada um dos mundos, o relacionamento do eu com o mundo exterior.
Historicamente também pesquisado e analisado na bíblia, astrologia, numerologia, quiromancia, entre outras vertentes místicas.
Somos 4 mulheres atuando na performance, 4 diferentes características, 4 diferentes movimentos, assim por diante. Assim, como as estações (verão, primavera, outono e inverno); os elementos (água, fogo, terra e ar); pontos cardeais (norte, sul, leste e oeste); estações lunares (crescente, cheia, minguante e nova). Períodos, marcações, complementos...

Ao final, percebe-se que cada uma das 4 mulheres carregava 3 camadas de tecido. No total são deixados no chão, 12 lenços manchados, 3 marcas de cada uma. Assim como o ano, com doze meses. Terminamos a ação, como termina um ano, completando doze períodos subdividido por 4 momentos, estações.

Acredito que aqui refleti um tanto sobre algumas questões encontradas no processo.

Outro momento marcante para o desenvolvimento da performance foi a Oficina com Cláudia Muller – Corpos poéticos, corpos políticos no festival Dança Ponto Com.
Ela me ajudou a encontrar novamente a essência do trabalho. Os ciclos, a menstruação, o parto, o universo da mulher, associar ao Japão tanto faz. Retirar movimentos que levariam para algo caricatural do Japão, para movimentos que realmente digam algo sobre os períodos da vida.

Outra pessoa importante foi Marcos Barreto, convidado para assistir dois ensaios durante o processo de criação da performance. Lembro de três perguntas elaboradas por ele ao final do último ensaio.
- “O que move vocês?”
- “O que vocês sentem?”
- “Sentem dor?”

Respondi que me movia o fato de perceber os ciclos da vida. Permitir sangrar, marcar, para deixar ir embora, desfazer de camadas. Sinto vontade de contemplar, acariciar, ter consciência do que é necessário me desapegar. Existe um momento que não é fácil, preciso ser forte, o movimento é mais intenso, tento me desfazer e não consigo. Até perceber que desatando esses nós que nos prendem com calma, com atenção e cuidado, é possível estar livre. Existe um respeito, um carinho, mas agora está lá, solto no chão, como pegadas do que já foi. As camadas manchadas estão lá, soltas ao vento, próximas e alinhadas às outras camadas, outras mulheres que se permitiram ao movimento, à transição, à renovação, aos nossos eternos ciclos.

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